NATALIA DA LUZ, JB Online
JOANESBURGO - A Copa do Mundo favorece a celebração, especialmente em dia de jogo da grande anfitriã com uma equipe tradicional, forte e que promete fazer um belo espetáculo. A partir das 20h30 (15h30, de Brasília) África do Sul enfrenta o Uruguai, mas não é apenas a partida que faz do dia de hoje mais especial. Há 34 anos, ainda durante o apartheid, o 16 de junho entraria para a história do país, devido a um evento trágico.
Mas de 10 mil estudantes (recebidos a bala) foram às ruas de Soweto com cartazes que diziam: “Abaixo o Afrikâans”. Eles falavam zulu, xhosa, tsonga, sotho e as outras línguas locais desejando seguir devotos à própria cultura, sem a obrigação de aprender o idioma dos colonizadores. “Por que falar a língua de um povo que nos aprisionou? Já tínhamos que seguir muitas regras. Não podíamos freqüentar os lugares onde tínhamos nascido e aí queriam nos obrigar a falar afrikâans?”, perguntou o sul-africano Thebo Moklate, de 50 anos, que vive em Soweto, o cenário de um dos maiores massacres estudantis do período do apartheid. A foto de Hector Pieterson (de apenas 12 anos), morto após o ataque violento da polícia, ficou eternizada. Rodou o mundo, levando repúdio ao sistema implantado na África do Sul, que apenas naquele ano matou cerca de 700 jovens em protestos ao longo dos meses.
Steve Biko: o líder da Juventude
A revolta contra o governo foi influenciada por Steve Biko, um dos grandes ativistas sul-africanos e fundador do movimento Consciência Negra, proibido pelo governo após o massacre. Inspiração dos estudantes, Biko também foi o fundador, em 1968, da União Nacional de Estudantes Sul-Africanos tornando-se presidente honorário da Convenção dos Negros em 1972. Devido ao seu ativismo contra o apartheid em 1973, ele foi banido pelo governo, sendo proibido de se comunicar com mais de uma pessoa por vez. Nesse mesmo ano, a Organização das Nações Unidas considerou o apartheid um crime contra a humanidade. Mesmo assim, ele encontrava mecanismos de burlar o exílio para levar à mensagem de valorização da raça negra.
O propósito dele era que os negros entendessem que eles não eram inferiores, que eles poderiam sim ocupar cargos importantes na terra onde nasceram. O que se tornou realidade apenas após o fim do apartheid... A sul-africana Thefubi Mshane acredita que as ideias de Biko transformaram a percepção dos negros em relação às suas capacidades. As profissões de seus ancestrais sempre estiveram ligadas às atividades secundárias, cuja maior exigência não era a técnica ou a intelectual. Eles dificilmente conheciam um professor, médico, e principalmente um engenheiro negro. “Nós não tínhamos nem a possibilidade de sonhar em seguir algumas carreiras. Poucos conseguiam. Hoje, os jovens negros tem chances maiores”, disse a moradora de Soweto ao JB.
Poucos negros chegavam à universidade, e menos ainda saíram do país para estudar no exterior. Havia um abismo entre o potencial intelectual explorado entre brancos e negros. Isso já estava tão inerente, tão assimilado que dava a sensação de que o cenário seria permanente, eterno.
Sistema de ensino para os negros era limitado
Um cenário que era mudado pelo discurso autoconfiante de Biko que alimentava o ego desnutrido e raquítico dos negros. Vale ressaltar que desde 1955, o governo implantara um sistema de ensino específico para os negros, que tinha como lição principal ensinar que os mesmos eram inferiores. As aulas e todo o sistema orientavam os sul-africanos de pele escura para um mercado de trabalho não-qualificado. Muitas matérias foram excluídas, já que não eram necessárias à formação de um aluno negro. Os investimentos no ensino da população negra foram reduzidos drasticamente e os salários dos professores também. Milhões de negros protagonizaram esse abismo na educação do próprio país, que gastava com os negros um décimo do que era gasto com os brancos. As escolas dos negros eram muito precárias. Muitas não tinham eletricidade, nem água corrente.
Antes da tentativa de instituir o afrikâans, o governo tornou o inglês obrigatório nas escolas dos negros. Muitos se recusavam e não se esforçavam. E isso não era coisa muito antiga não. Na adolescência de Thebo ele viu muitos casos como até mesmo em Soweto. Nas áreas mais carentes e rurais espalhadas pela África do Sul ainda há muitos negros que não entendem bem o idioma. Grande parte desses não foi à escola, mas há os que simplesmente se recusaram aprender. De certa forma, o inglês foi uma solução para que sul-africanos, independentemente da raça, pudessem interagir com outros grupos. Mesmo a contragosto, os negros entendiam essa necessidade.
“Eles nos chamavam de kaffir, (expressão ofensiva direcionada aos negros como a versão sul-africana do níger), enquanto nós tínhamos que chamá-los de baas, (senhores em afrikâans). E depois disso, ainda tínhamos que conhecer a cultura deles...”, contou Thebo, que se recusa a falar um Hallo (Olá, em afrikâans), apesar de o seu maior ídolo saber muito bem a língua dos baas.
Como Mandela seduziu seus detratores
Conforme os movimentos de repressão ao apartheid foram se intensificando e as retaliações ficando mais agressivas, Mandela pensou que o melhor caminho para a África do Sul seria dar dignidade aos negros de forma pacífica, fazendo alianças e conquistando, aos poucos, seus maiores inimigos. Mesmo atrás das grades, ele exercia grande influência sobre o mar negro que se formava a cada protesto. Naquele momento, Mandela queria influenciar os brancos.
O jogo de sedução que durou duas décadas levou o primeiro presidente sul-africano negro a estudar afrikâans. Além da língua, ele aprendeu sobre seus gostos, costumes, medos e paixões. De opositor, ele tornou-se admirador de rúgbi, um conhecedor nato que intrigava até mesmo os brancos mais especialistas. Conhecendo a cultura do inimigo, Mandela pode se aproximar e se mostrar aos seus detratores. Ele tratava os policiais com gentileza e seriedade. Acabou criando muitos amigos desta forma e levou o sonho da democracia para seu povo.
Foi uma estratégia lenta que ofereceu um novo caminho para o banho de sangue que era esperado. Mas enquanto Mandela aprendia a língua dos afrikâaners, encarcerado na Robben Island, os jovens de Soweto repudiavam a sua obrigatoriedade iniciando uma série de confrontos que começaram no dia 16 de junho de 1976, deixaram mais de 700 estudantes mortos e milhares de feridos durante o ano.
Ídolo dos jovens, Biko era contra as lições de inferioridade dada aos negros por ordem do governo branco. “Ele queria que os negros tivessem a consciência de sua capacidade e que ocupassem importantes postos na sociedade”, falou Thebo. Mesmo exilado e vigiado 24 horas pela polícia, Biko influenciava, inspirava e conspirava a favor de uma África do Sul justa.
Em uma de suas escapadas, especificamente no dia 6 de setembro de 1977, Biko ele foi reconhecido em uma blitz e levado para a prisão. Durante dias consecutivos, ele sofreu inúmeras agressões. Em 11 de setembro, foi diagnosticado com uma lesão cerebral. Os policiais não o levaram para o hospital mais próximo optando pelo de Pretoria, que ficava a quase mil quilômetros da prisão na Cidade do Cabo. Biko morreu a caminho e o governo alegou que o motivo da tragédia teria sido a greve de fome. Uma inverdade que logo ganhou o mundo graças a um branco: Donald Woods.
Um branco a favor da juventude negra
Donald Woods era descendente britânico e sua família estava há cinco gerações na África do Sul, especificamente em Eastern Cape, que o ajudou na fluência em afrikâns e xhosa, já que a província reúne muitas fazendas de afrikâaners e a concentração do povo xhosa. Desde que o Partido Nacional assumiu o poder, o editor-chefe do Daily Dispach, veículo que seguia uma política anti-apartheid começou a questionar as regras separatistas. Ele rejeitou até mesmo a política de assentos na redação do jornal, permitindo que negros, brancos e coloureds sentassem lado a lado.
Porém, mesmo em desacordo ao regime, ele tinha um receio quando às idéias de Biko, que aos olhos do governo, eram revolucionárias e perigosas. Woods foi conhecer Biko e ficou extremamente tocado. Com exceção dos policiais, os brancos não conheciam de perto a realidade de seus conterrâneos, que viviam a margem de sua comodidade. Woods passou a experimentar esse lado sul-africano na companhia do líder negro. Logo os dois de origem tão distantes, de mundos tão diferentes começavam a falar a mesma língua. Woods se tornou um grande amigo e confidente de Biko.
E por isso ele tomou para si a responsabilidade de contar ao mundo o que, de fato, tinha acontecido ao amigo. Foi ele quem ordenou que seu fotógrafo tirasse registrasse o corpo de Biko ainda no necrotério provando que ele havia sido brutalmente agredido e que a causa de sua morte não era um suicídio por enforcamento, mas sim um terrível espancamento. Woods desmascarou a justiça sul-africana tornando-se consequentemente um grande inimigo do governo. Para Idah, que também vive em Soweto, o sul-africano se tornou um exemplo de luta pela igualdade. “Woods não era um branco como a maioria. Ele tinha mais sensibilidade e estava cansado de tanta impunidade. Certamente ele foi um dos que teve importância na luta contra o regime”, opinou Idah.
O jornalista foi para Londres onde conseguiu asilo político tornando-se um porta-voz do ativismo anti-apartheid. Espalhou pela imprensa mundial as fotos com as marcas no corpo de Biko e publicou um livro com a sua história, uma biografia do grande líder da Consciência Negra que leva o nome do próprio personagem. O retorno à África do Sul antecedeu as primeiras eleições democráticas do seu país. Nas eleições do dia 27 de abril, reconhecendo os seus esforços, a multidão que aguardava para votar, deu a ele um lugar de honra para que ele pudesse ser o primeiro a votar. Mas mesmo com as provas de Woods, o Ministério Público anunciou em 2003 (dois anos após a morte de Woods em decorrência de um câncer) que os policiais envolvidos não seriam processados. O Estado não se responsabilizava.
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