quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

“Berço das desigualdades” Prof. José Pacheco

Releio o “Berço das Desigualdades”. A cada voltar de página deste livro do Sebastião Salgado, novas imagens confirmam o título. As palavras do Cristóvão são tão concisas quanto discretas, e não reduzem o impacto das fotografias que legendam.

O olhar penetrante das crianças “desiguais” invade-nos e faz-nos crer que, somente por humana presunção, acreditaremos viver o tempo da História. Na verdade, habitamos a Proto-História do Homem. No tempo que nos coube em sorte viver, os homens dirimem os seus conflitos pelas armas. Matam em nome de um credo. Usurpam territórios em nome da paz. Edificam tribunais e prisões em nome da justiça. As frágeis e absurdas instituições do nosso tempo são reflexos de uma humanização precária. E a instituição Escola, concebida como berço de oportunidades, ainda é um “berço de desigualdades”.

O espaço público da Educação ultrapassou a exiguidade das paredes da sala de aula, mas muitos ainda não se perceberam dessa mutação. Por seu turno, as medidas políticas que visam reformar a instituição, são centradas em vícios institucionais jamais questionados, e sempre medidas avulsas. Sucedem-se decretos e despachos, decorrentes das conclusões de gongóricos relatórios produzidos por inúteis grupos de estudo. Acumulam-se no ministério e nas universidades dispendiosos “estudos”, que não logram ir além de óbvias e ressequidas “recomendações”.

Somemos à ineficácia dos políticos e “estudiosos” o papel nefasto dos opinion makers, que, impunemente, vertem nos jornais a sua ignorância. Bem nos avisava a Hannah Arendt: tudo quanto é real ou autêntico é atacado pela força esmagadora da «tagarelice» que irresistivelmente emana do domínio público, determinando cada aspecto da vida quotidiana, antecipando e aniquilando o sentido ou o sem-sentido de tudo. E não esqueçamos a febre dos rankings. Guardo-os no ficheiro das anedotas sem piada.

Vivemos imersos em diferentes culturas, mas as medidas de política educativa aplicam-se, indiferenciadamente, em todos os países. As realidades brasileiras são condicionadas por influências transnacionais, num projecto de modernidade ainda por cumprir. Aferimos o estado do nosso sistema educativo através de estudos comparativos, como se fosse possível reduzir a realidade a cifras, ou comparar o que é, diametralmente, diferente. As leis preconizam que se deve assegurar uma formação geral comum a todos, proporcionar aos alunos experiências que favoreçam a sua maturidade física e sócio-afectiva e criar condições de promoção do sucesso escolar e educativo a todos os alunos. Porém, convivemos com o “insucesso educativo” como se a expressão não fosse, em si mesma, paradoxal. Como pode a palavra “educativo” ser adjectivo da palavra insucesso?

Jovens portadores de desigualdades acorrem às escolas, por via de um processo de massificação. Tratando os “desiguais” como se fossem iguais, “em pé de igualdade”, como geralmente acontece, não apenas mantemos a desigualdade, como a aumentamos. Não fora a dedicação e o anónimo esforço de muitos e bons profissionais da educação, há muito, o neo-liberalismo teria extinto a instituição Escola, como empresa falida.

Ainda há quem resista, e quem me confidencie vivências que confirmam processos de exclusão. Eu escrevo, denuncio. Posso fazê-lo, porque exponho factos e não estou exposto a processos disciplinares, que ainda fazem calar muitas vozes. Como a do professor que me escreveu: A tristeza vem quando me deparo com a realidade das nossas escolas. Pergunto-me porque será que muitos professores resistem tanto a uma pedagogia diferenciada, quando, para mim e para tantos outros professores a sua pertinência é tão óbvia.

Foi a m mesma voz que relatou um incidente crítico, que me custou a digerir…

A colega dá-me licença? – E, sem aguardar resposta, a “colega” entrou na sala.

É o que faz deixar vir para a escola estes marginais lá do bairro! Tínhamos uma escola tão bonita e, agora …! – E vai de espetar um sonoro par de tapas num dos alunos “feios, porcos e maus”…

Grita um catraio da “fila dos bons”: Não foi esse que partiu o vidro, minha senhora!

Ai não foi? Então, pronto! Já fica com ela, para quando fizer besteria!

Na fila dos burros, onde vegeta o “desigual” contemplado com a bofetada, não há quem saiba ler o “quadro da belezura”, onde os caladinhos escrevem os seus nomes, no fim de cada aula. Nem o “quadro da feiura”, onde escrevem os seus nomes aqueles que não conseguem completar as suas tarefas escolares no tempo pré-estabelecido, ou que as terminam antes do tempo… e usam o restante em ameno falatório. Na fila dos “desiguais”, o “lixo da escola” – foi a expressão que eu escutei numa escola “igual”, há muitos anos – aguarda a hora do intervalo, espera o fim do dia, desespera.

Felizmente para os “desiguais”, nem todas as escolas são “iguais”. Creio na remissão das escolas, porque creio no potencial transformador dos seus professores. E acredito que a Escola há-de resgatar o seu papel de “berço de oportunidades”.

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